Ela dizia que não se sentia confortável em ser uma mulher suscetível à escolha de terceiros. Como ela própria costumava defender, “tenho que pedir, tenho que escolher” nas relações humanas. O problema de se colocar como uma pessoa que escolhe é que, muitas vezes, a resposta dos nossos escolhidos acabam por estar muito aquém das nossas expectativas. Nos frustram, nos ferem e nos confundem.
Clarice Lispector foi uma figura bombástica na literatura e cultura brasileiras. Seus livros repercutiram ao extremo dentro dos meios literários, suas frases de impacto permeiam o imaginário popular até hoje (a ponto de muitas frases falsas serem atribuídas a ela, tamanho parafraseamento) e seu retrato segue como um dos perfis mais contemplados pelos leitores e intelectuais de nosso país. Não é à toa: romances intensos e com desfechos pouco prováveis, como A Hora da Estrela e Perto do Coração Selvagem (por sinal, um dos meus livros favoritos), acenderam uma luz em uma literatura ainda muito afeita às heranças do modernismo e da constante busca do movimento por uma literatura mais popular. Clarice é uma das figuras a romper com esse modelo ao se inserir no meio com obras que prezam por uma profunda reflexão acerca da existência humana.

É claro que há um valor inestimável nas obras publicadas por Clarice. E não à toa: ela deu vida a palavras muito fortes e personagens que fogem completamente da obviedade (a célebre frase ‘Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome‘ é dela e de sua intempestiva Joana de Perto do Coração Selvagem). Mas o que poucos desvendam por trás de retratos que inspiram serenidade é que Clarice foi uma mulher intensa e profundamente melancólica. Na magistral biografia Clarice, (inicialmente lançada pela extinta Cosac Naify e agora reeditada pela Companhia das Letras) – publicada pelo jovem pesquisador, escritor e biógrafo americano Benjamin Moser (o primeiro estrangeiro a publicar sobre um autor brasileiro), uma nova faceta vêm à tona. Clarice têm um passado obscuro, de uma família judia fugida da Ucrânia em tempos de antissemitismo: sua mãe fora estuprada por soldados por ser judia e contraiu sífilis, doença que a tornaria vítima de uma morte precoce; seu pai passou a vida inteira tentando progedir social e fincanceiramente; sua fala única, de língua presa, e seu sobrenome a faziam carregar o estereótipo de estrangeira, que a aborrecia profundamente (o próprio crítico e professor Antonio Candido dizia, com inegável bom humor, que ninguém no Brasil se chamava Lispector e que acreditava que o sobrenome era, na verdade, um pseudônimo).
E não pára por aí: Clarice era carregada de mistérios e de uma beleza pouco comum, que lhe conferiam um status de inacessibilidade. Status, esse, contra o qual lutou durante toda sua vida e que a fazia sofrer. Suas respostas curtas e evasivas nas raras entrevistas que concedia escondiam uma mulher que lutou duramente contra uma insistente depressão, era viciada em nicotina e medicamentos para dormir. Também escondiam uma mulher que declarava abertamente preferir a companhia de crianças e animais, pois a inocência dos mesmos os tornavam menos propensos a recusar o amor que ela era capaz de oferecer – e que afugetava os adultos que terminavam por decepcioná-la. Suas obras literárias, de uma intensidade única e bela construção de palavras (opondo-se a um excesso de rebuscamento que tanto transformam um escritor em algo distante do público leitor em potencial) eram acessíveis e dialogavam diretamente com os sentimentos humanos – e são assim até hoje. E nessas mesmas obras, a complexidade existencial de suas personagens e os enredos pouco previsíveis misturavam-se à sua persona melancólica. Um quê de autobiografia e pedido de socorro dentro do romance de ficção.

Ler a biografia de Clarice muito que me impactou. E me feriu. São páginas e mais páginas de identificação com uma mulher que esbanjava autoconfiança, mas que sofria com uma solidão imposta pelo seu meio de convívio. Sua figura intimidava, quando na verdade o que ela mais desejava era amor, compreensão e companhias. Há um quê de tristeza em constatar que, assim como Clarice, muitas vezes somos mal compreendidos e nossas demosntrações de afeto tornam-se objetos pouco valorizados. Moser, do alto de sua descoberta deliciosa da complexa e visceral literatura brasileira, soube muito bem decifrar parte do enigma que essa mulher era. O resultado é uma leitura intensa, que acaricia e estapeia com a mesma facilidade.
VAI LÁ
Clarice, – Uma Biografia
Editora Companhia das Letras
Autor: Benjamin Moser
Tradução: José Geraldo Couto
Número de Páginas: 604
Link para compra: Amazon
Classificação Final: ♥♥♥♥♥ (Excelente)