No cair da noite, ela está vestida. Usa seu conjunto de pijama de algodão pra se esquentar do frio, enquanto lê as páginas de um livro intenso sobre sertões e sobre o poder feminino em cima das cavalgadas de comando firme.
Inspirada por sua heroína, começa a rasgar o verbo contra as atitudes e palavras vazias que saem dos lábios finos e bem desenhados do seu homem. Quer tecer discussões construtivas na madrugada, e se frustra diante de tanta falta de tato que ele tem com certas verbalizações. Não sabe onde começa a amizade com aquele jovem branco e alto, que conhecia com a palma de suas mãos, e onde terminam como um casal, que tem acesso ilimitado a cada uma das partes do corpo do outro.
Ela sentia-se como uma protagonista falastrona dos tempos modernistas. Exige que o macho tome posture de macho, no sentido responsável da palavra. Que pare de repetir velhas piadas, que esqueça do exagero de suas atitudes e que busca um novo lado de si mesmo com o qual nunca entrou em contato. Ele usa outra arma sem vergonha: a de dizer que já está tarde demais pra mudar. Que lidar com mudanças é complicado. Mas na verdade, ela só quer mesmo que ele se coloque como uma pessoa mais madura e segura de si mesma, que seja capaz de lhe transferir força e tranquilidade. Que ele seja capaz de protegê-la e, ao mesmo tempo, deixá-la livre pra seguir seus próprios caminhos.

A seu lado, de repente, ele a toca no rosto e dorme. Arrasta o corpo curvilíneo e moreno dela contra o seu e tenta niná-la, fazendo cafunés desengonçados no seus cabelos escuros e compridos. Ela, por outro lado, permanece desperta, observa as linhas e os contornos do rosto do companheiro e começa, então, a conversar consigo mesma. O cansaço não lhe é proveniente das madrugadas, horário no qual sua mente e sua alma inquieta mais se sentem despertas e livres para poder criar e explorar o universo ao seu redor. Na escuridão da noite, mesmo com o medo que lhe ocorre com as sombras do quarto, ela sente um impulso tomar conta de seus músculos sedento por movimentos e conhecimento.
Na casa do lado, os ruídos a colocam em estado de alerta. Há um pequeno medo crescente dentro de si, um lado protetor de si mesma que a coloca em posição de ataque contra o inimigo, ainda que o mesmo seja, na maior parte do tempo, um fruto de sua mente criativa e inquieta. A falta de sono a incomoda, ao mesmo tempo que a impulsiona a criar situações e deixar a sua imaginação aflorar. Como uma vampira que sai pelas ruas madrugada afora sedenta por vitalidade, ela troca o dia pela noite. E sente vontade de explorar os cenários que cercam o asfalto e de conhecer mais pessoas e lugares cheios de vida.
Seria possível que, algum dia, teu amante e amigo pudesse compartilhar de tantas horas insones e de ser ele mesmo um parceiro de palavras e conversas extensas? Seria ele capaz de se levantar do sono que o acomete na escuridão da noite e levá-la pela mão por lugares que ela não conhece e não consegue descrever precisamente, mas que habitam teu imaginário em imagens cênicas?

De repente, o homem nu ao seu lado estende a mão e percorre os dedos firmes em seu corpo delicado. Parecia ser capaz de ler a sua mente, ou ela própria desconfiava que fosse o efeito da pequena discussão que tiveram minutos antes. Não parecia, afinal, a pessoa cansada e pouco energética que aparentava mostrar com suas falas despreparadas. Era o homem que desejava, o amante capaz de lhe distribuir beijos cálidos em sua pele e de venerá-la com um tesão que ela própria não sabia que era tão capaz de despertar.
Entrelaçando-se um no outro, trocaram ruídos e toques de veneração. Procuravam a vitalidade que só o momento presente entre a noite e o amanhecer era capaz de proporcionar. A cidade dormia, mas eles permaneceram despertos até os primeiros minutos da manhã, quando o sol anunciou que era hora de pegar no sono.